sexta-feira, 1 de maio de 2015

Ética e saúde mental - Durval Mazzei Nogueira Filho



Segundo o dicionário de filosofia de Ferrater Mora (1), o termo ética, no grego clássico, deriva de uma palavra que significa "costume". Daí, conceituar ética como a doutrina dos costumes. No dicionário de Abbagnano (2), ética aparece como a ciência da conduta e inclui duas concepções: 1. como a ciência do fim a que deve dirigir-se a conduta dos homens e dos meios para alcançar tal fim e derivar, tanto o fim como os meios, da natureza do homem; 2. Como a ciência do impulso da conduta humana e tenta determiná-lo com vistas a dirigir ou disciplinar a conduta mesma.
Mais recentemente, em função do avanço da possibilidade de manipular a natureza humana por meios biológicos, uma nova divisão da ética passou a ocupar os pensadores. Trata-se da bioética. A bioética é definida por Barchifontaine e colaboradores (3) como "um exame crítico das dimensões morais do processo de decisões no contexto de saúde e em contextos que envolvem as ciências biológicas". Spinsanti (4) retira da Enciclopédia de Bioética, publicada nos Estados Unidos, a seguinte definição: "o estudo sistemático da conduta humana no âmbito das ciências da vida e da saúde, enquanto esta conduta é examinada "a luz dos valores e dos princípios morais."
Portanto, ao mesmo tempo em que a ética objetiva algum tipo de controle e orientação da conduta humana é presa fácil da impotência e da crítica que pode ser feita a partir de perspectivas relativistas ou totalitárias. Afinal de contas, os costumes não são exatamente os mesmos na variedade de culturas que a humanidade constituiu e a própria noção de "natureza humana" não é simplesmente definida. Lepargneur (5) diz: "os teólogos cristãos...[dizem]...a Vida em Deus é conhecimento (o Verbo) e Amor (o Espírito). Estas observações passam longe da experiência socio-biológica. Para o naturalista a vida não se apresenta antes como conhecimento e amor, mas como agressividade e violência"
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Desde o século passado que se anuncia ao mundo que há uma perspectiva se insinuando. Nietzsche ao proclamar a morte de Deus, mais do que desejar uma genealogia para além do Bem e do Mal, trazia um diagnóstico e um alerta. O arbítrio divino não mais dirigiria o fim último da conduta e da natureza humana. O Verbo divino estaria em vias de cobrir-se por um manto de silêncio. A secularização em marcha, operada por uma atividade essencialmente humana; a ciência, costuraria todo e qualquer buraco no manto por onde algum fiapo de som fosse ouvido. Mesmo o som da voz outrora tonitruante ao ditar os Mandamentos. O mundo e os sujeitos, possessão da ciência. Para o Bem e/ou para ou Mal.
A história, desde o filósofo alemão, caminhou. O que era metáfora romanceada em estilo gótico, Frankenstein, travestiu-se em uma simpática ovelhinha: hello, Dolly. Finalmente sem recorrer ao dispositivo sexual e um largo passo além da fertilização "in vitro" , a comunidade humana criou vida, um ser. Completo e ele próprio capaz de reproduzir-se. O próximo passo deve estar sendo dado na surdina...
É esta a nova via ética à disposição. Calafrios diante da divindade? Nem pensar! Temer a morte? Há células de meu corpo prontas para criar um novo "eu"!
Angústia? Uso drogas! Na expressão de Melman (6) "a evolução de nossos costumes vai hoje em dia na direção...de uma delinqüência generalizada...que esta evolução de nossos costumes está ligada aos progressos da ciência que, como sabemos, vêm sacudir nossa ética."
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Há não muitos anos atrás, o amplo campo da saúde mental foi interpelado por um discurso ético. A possibilidade da doença mental e do tratamento psiquiátrico foi posta em questão. Um certo humanismo libertário, por vezes curiosamente inspirado em uma crítica ao sistema capitalista liberal, outras vezes inspirado na crítica ao individualismo ocidental, forçou as portas e entrou na sala dos psiquiatras. Esta atitude, entronizada no movimento contracultural, recebeu o nome de anti-psiquiatria.
Não há como afirmar que este ato deixou marcas. Mas, seja lá qual for a verdade histórica, foi em seqüência a este ato que se preocupou, por exemplo, com a duração das internações dos pacientes e com as condições em que a hospitalização acontecia. Se o avanço da terapêutica neuroléptica e mesmo o economicismo reinante na medicina foram razões mais potentes e eficientes que o discurso anti-psiquiátrico, digam os historiadores.
Por outro lado, em outro lugar, mas também cronologicamente após a revolução anti-psiquiátrica, apressou-se a determinação de uma base universal para a doença mental. E apesar da humanidade também exibir como um universal o agregamento em culturas simbolizadas, o universal onde se baseou a definição de doença mental foi o biológico.
Desde os anos 70, as pesquisas neurocientíficas casaram-se com a atvidade clínica do psiquiatra. Um novo código classificatório surgiu, o DSM-III que já produziu "filhos’: o DSM-IV e o CID-X, e assumiu plenamente a versão teórica empiricista da Psiquiatria – há uma questão ética quando os formuladores deste código chamam-se "ateoréticos" – e contando com o apoio do pragmatismo e de preocupações de cunho econômico, tomou de assalto a casa toda dos psiquiatras. Dizem-se verdadeiramente científicos, racionais, organizadores, eficientes... e ateoréticos.
O desenvolvimento desta perspectiva – teórica, novamente – foi rápido e avassalador. Contribuiu para a construção de fortes crenças práticas e cotidianas de que a razão da doença mental está em vias de desvelamento e corresponde justamente à orientação biológica que assumem e que engloba a própria natureza do ser humano, em sua versão cerebral.
Todavia, além de não mais ocorrer a contestação da doença mental, nem há mais a preocupação em conceituá-la. Há, sim, a identificação da doença mental com qualquer declaração de sofrimento do interlocutor do médico. Desde o luto, talvez necessário, pela perda de algum ente querido ou alguma insígnia de poder até a eclosão repentina e assustadora de um estado intenso de inibição, de caráter endógeno, recebem do psiquiatra um anti-depressivo. E, se o dia a dia do psiquiatra tem transcorrido assim, não é por ignorância, má fé ou desumanidade. É porque a ciência psiquiátrica – a mais moderna possível – caminha por aí. Não há nenhuma razão para incluir na clínica preocupações que não tenham sido devidamente demarcadas por experimentos. Pensar na Ich-stallung (posição Eu), para usar um termo de Von Weizsäcker, na qual o doente é o sujeito estruturante da doença não é a tendência que polariza o pensamento do psiquiatra moderno. É mais conveniente considerar a Es-stallung (posição Isso) e objetivar o mais rapidamente o sofrimento. Se este cala-se com uma droga – como ocorre com o vagido, absolutamente natural e não patológico, de pequenos cães afastados de sua genitora - , qual a razão para problematizar a questão? Este estilo marcante tem produzido discussões sobre a conveniência de relegar ao limbo práticas terapêuticas mais complexas, notadamente no campo das psicoterapias interpretativas e investigativas, que apostam na condição simbólica e universal original do homem.
Não se fala aqui de cada um dos psiquiatras singulares. Discute-se a orientação teórica. Discute-se o cientificismo. "Sem embargo, os resultados práticos alcançados [pela ciência] não devem levar a descuidar o fato de que a razão mesma, movida a indagar de forma unilateral o homem como sujeito, parece haver esquecido que este está também chamado a orientar-se para uma verdade que o transcende. Sem esta referência, cada um cai à mercê do arbítrio e sua condição de pessoa acaba por ser valorizada com critérios pragmáticos baseados essencialmente no dado experimental, no convencimento errôneo de que tudo pode ser dominado pela técnica." (7).
Assim, seguindo fielmente a ambigüidade que há em tratar eticamente as questões – seja a ética doutrina dos costumes ou ciência da conduta – a questão que se esboça, na saúde mental, não é mais se no sujeito chamado doente mental predomina o aspecto negativo, se ele está sendo bem tratado ou se a eletroconvulsoterapia é legítima. A questão que se esboça é qual ética o psiquiatra singular vai obedecer. Se a ética do pragmatismo, bem ao gosto da modernidade psiquiátrica, que suspende o tempo de reflexão e mistério e determina que o direito é o de fazer o que é imediatamente possível. E, por esta via, caminhar celeremente para a desautorização de qualquer outro discurso que não seja a evocação de um, ainda místico, desequilíbrio nos neurotransmissores para explicar qualquer sofrimento. Ou se perdurará a ética da transcendência onde "o "ser para" é não redutível ao "ser para si mesmo", [e] os valores interferem com o supremo preceitos de eficiência máxima, [onde] os fins proíbem o uso de meios potentes."(8).
É isto. O crucial problema ético na saúde mental é este. Se cada um dos psiquiatras clínicos vai reduzir sua clínica aos neurotransmissores e os demandantes a "seres para si mesmos", encerrados em uma mônada de neurônios e giros, ou deixar predominar uma noção de homem e de doença mental abertos à cultura e que admite uma função ao simbólico.
Bibliografia.
Mora, J.F. (1996) Dicionário de Filosofia. Martins Fontes, São Paulo.
Abbagnano, N. (1992) Diccionario de Filosofía. Fondo de Cultura Economica, México.
Barchifontaine, C.; Pessini, L.; Rouer, A. (1987) Bioética: uma palavra introdutória. Em Bioética e saúde, org. C. Barchifontaine, L. Pessini e A. Rouer. CEDAS, São Paulo.
Spinsanti, S. (1987) A ética para uma medicina humana. Em Para um hospital mais humano, org. P. Marchesi, S. Spinsanti e A. Spinelli. Edições Paulistas, Lisboa.
Lepargneur, H. (1987) Vida e ética. Em Bioética e saúde, org. C. Barchifontaine, L. Pessini e A. Rouer. CEDAS, São Paulo.
Melman, C. (1992) Reflexão sobre nosso embaraço espiritual e terapêitico em relação ao toxicômano. Em Alcoolismo, delinqüência e toxicomania. Escuta, São Paulo.
Paulo II, J. (1998) Carta enciclica "Fides e Ratio" (à disposição na Rede de computadores).
Bauman, Z. (1997) Ética pós-moderna. Paulus, São Paulo.

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